Livre brincar

Seminário "O adulto frente ao livre brincar" (transcrição da fala de Adriana Di Mambro)

Dri é psicóloga e foi nossa consultora pedagógica de 2015 a 2018; nos ajudou a construir o que é hoje o Quintal, nos propondo reflexões a partir de suas experiências profissionais em outras escolas de Belo Horizonte, transmitindo suas referências para a equipe e para as famílias associadas, e se relacionando diretamente com as crianças semanalmente, tendo como base o conceito de Livre Brincar, que ela compartilha nesta fala de outubro de 2017.

Há dois meses, tivemos a ideia deste seminário, com o desejo de trazer vocês todos, a comunidade do Quintal, para pertinho do trabalho que a gente faz na Comissão Pedagógica.

Na Comissão fazemos reuniões, conversas - nós da equipe conversamos sobre o trabalho semanalmente e toda a Comissão quinzenalmente. Mas sempre sentimos falta de contar pra vocês todas as nossas reflexões, por que a gente faz o que faz, o que a gente pensa. Porque é um trabalho vivo, né? Não desenvolvemos uma técnica... não tem isso. Cada dia as coisas vão acontecendo na nossa frente e vamos repensando; aquilo vai se agregando e o trabalho vai ficando mais forte.

Viemos perseguindo um objetivo, desde o comecinho da nossa proposta de Quintal, que é oferecer para as crianças um espaço e um tempo para a brincadeira.

E por que brincadeira? De onde que a gente tirou isso? “Fica lá brincando e não faz nada?” A gente ficava assim: “Será que quem olha pensa assim: - Nossa, mas esses meninos vão ficar aqui só brincando?”. Por que a gente escolheu a brincadeira? Por que a gente dá tanto valor para ela? E por que a gente, toda semana, conversa sobre isso? Toda semana avaliamos assim: - Nossa... interferi, não interferi? Interferi demais... Passei por cima! Às vezes as professoras chegam lá e contam: “Ai... hoje falei tanto”...

Por que perseguir esse objetivo de deixar o protagonismo para os meninos?

No percurso que a criança faz, ela brinca desde que nasce. Desde que ela coordena minimamente os movimentos. O primeiro brinquedo dela é a própria mão. E daí ela vai num contínuo de desenvolvimento global da inteligência de uma forma geral e a gente consegue enxergar isso na brincadeira dela. E se a gente for pensar, quem ensina a criança a brincar com a mão ? Quem ensina a criança brincar com o pé? E a gente fica tão encantado... Porque todo mundo fica encantado diante de um bebê brincando com o próprio corpo.

E a criança vai, sozinha, fazendo todas as coisas que ela precisa para continuar se desenvolvendo. Então se a gente for reparar a criança em cada etapa da vida dela no seu brincar, a gente faz uma ligação direta do desenvolvimento com tudo que ela precisa para esse desenvolvimento acontecer. Ela brinca com o próprio corpo; a hora que ela descobre o próprio corpo, ela entende que ela é diferente da mãe dela. E começa a achar graça naquela brincadeira, que é uma brincadeira que a gente introduz, de esconder e aparecer. Que ajuda essa criança a entender que a mãe, que antes era embolada com ela, desaparece, mas que depois volta. E isso tem a ver com necessidades lá de dentro dela... a gente vai brincando e ela vai ficando segura e começa a engatinhar, começa a explorar o espaço.

E a criança tem um padrão que é o de explorar sem nenhuma regra, sem se preocupar com a função das coisas - tanto o espaço quanto os objetos. Ela quer descobrir aquilo, ela descobre aquilo com o corpo inteiro, com a boca, com a mão, ela vira... É um encantamento, uma vontade de conhecer o mundo, e ela vai expressando isso na brincadeira. E essa brincadeira vai evoluindo junto com o entendimento dela do mundo.

Nessa fase mais novinha, a criança apreende todas as coisas que estão ao redor dela, o mundo externo (que ela não tem consciência lá de dentro dela), através das sensações, que são muito mais desenvolvidas que as nossas. Depois que começamos a ter um pensamento mais elaborado, vamos deixando as coisas de lado e ficamos muito mental. A criança não. Tudo causa uma marca nela, que ela vai devolver depois na brincadeira. Então, o ambiente afetivo, a maneira como a gente conversa com ela, a maneira como a gente brinca, o ambiente onde ela transita, dentro de casa, na escola, na casa da avó, tudo aquilo vai contando para ela o que é o mundo e como o mundo funciona, mas ela não tem consciência disso, ela vai introjetando aquelas coisas.

À medida que a criança vai ficando mais consciente, aos 3 anos, vocês [mães e pais] ficam assim: “Nossa! O que fazer? Tudo é não!” Essa é a hora que a criança tem, até então, o máximo de consciência dos 3 anos de vida dela, que ela entende: “eu ando, eu falo, eu penso, eu vou onde eu quero”. E nessa hora que ela se afirma, assim: “Vamos tomar banho? - Não!”. Claro que não, se eu sou diferente, eu não posso fazer aquilo que é igual, né? Essa hora é a hora que a brincadeira dá aquela virada, porque é a hora que ela vai começar a devolver todas as coisas que estão lá dentro, todos os sentimentos, a maneira como a gente age, os gestos que a gente faz, que a gente nem vê, elas repetem absolutamente tudo, porque elas aprenderam assim. A primeira maneira delas aprenderem é por imitação. Essa apreensão que fica lá dentro, ela começa a devolver, ela devolve como se fosse um efeito, assim: bateu e ela devolve. E, depois, ela vai fazendo isso com mais consciência, como se ela pensasse: “Não é assim? É assim?”. Ela vai devolvendo aquilo que ela entendeu que é a maneira como o mundo funciona, as relações, enfim. Essa hora, de 3 anos para frente, jorra de dentro deles um impulso criativo e de tudo aquilo que ficou, nesses 3/4 anos de vida, lá dentro, e ela vai colocando para fora. Está lá dentro, põe para fora. E na hora que põe pra fora, enxerga; e aquilo fica cada vez mais consciente.

Por isso é tão importante oferecer o tempo e o espaço para que isso aconteça. Se a gente parte de um outro lugar, de onde temos coisas para ensinar, sendo que nós mesmos somos tão estereotipados, tão cheios de limites... vamos conduzir de alguma forma, e isso (essa experimentação da criança) fica podado. Porque somos grandes demais perto deles, nossa voz é mais forte, nosso tamanho, temos muitas certezas. Já chegamos propondo e colocando as coisas como “devem ser” e fica faltando essa parte para eles.

E daí em diante, da mesma maneira que o bebê, a criança vai fazendo as coisas que ela precisa, e essa brincadeira vai ficando totalmente simbólica; é representação de tudo o que está lá dentro da criança. Nessa hora, tem uma troca do mundo externo com o mundo interno - ela põe também aquilo que ela sente, que ela percebe, as emoções dela. Quando estão juntas com outras crianças, inventam brincadeiras e fazem brincadeiras, que são essas brincadeiras que todos nós já brincamos, que cabem direitinho dentro daquilo que elas mesmas precisam para continuar seu desenvolvimento.

Então, essa cultura da criança, que a gente insiste tanto em proporcionar, é o contato de umas com as outras. Deixar aquilo ali acontecer. Quem que inventou: “fulano é o carta-branca”? É uma maneira de incluir quem não dá conta da brincadeira. As brincadeiras com ritmo que repetem, histórias ritmadas. [A turminha da] Maysa, ainda está? Já passou? Ou você ainda está na fase das histórias que se repetem? [Maysa: “Tá misturado”]. Fez isso, isso e aquilo. Aí volta lá: fez isso, isso, aquilo e mais não sei o quê. Às vezes, a gente fica cansado, mas isso atende lá dentro, a repetição serve para atender alguma coisa que ainda está em elaboração lá dentro. Às vezes, a criança pede a mesma história meses e meses, e você tenta pular uma parte que você não aguenta mais, ela fala assim: “mas aqui, faltou não sei o quê”, porque precisa daquilo. A gente não precisa saber para quê, a gente só conta e conta de novo, e conta de novo, e conta de novo.

Há alguns autores que comparam a entrega da criança para o brincar com a entrega do homem adulto ao sagrado. É uma entrega sem limite, é uma entrega total para aquilo. Então, é tão precioso esse ato de brincar, esse jogo de criatividade! A gente vê lá no Quintal, o nosso tanque de areia é super pequeno, às vezes, tem a turma da Maria inteira lá dentro e um tanto da Mayara. Você olha e fala: “Como?” Está cada um tão envolvido no que está fazendo e, às vezes, eles ficam assim um tempão, 1 hora, 1h15. Você fala: “não é possível”. E está lá, parece que não tem nada em volta, parece que não está escutando nada, e está lá brincando e põe areia, tira areia, e troca de pá, e troca de balde, e põe areia na peneira, a areia cai, e põe de novo, a areia cai. Um milhão de descobertas. E se você faz alguma coisa, corta tudo, porque sabe-se lá o que está acontecendo ali dentro. É uma coisa meio sagrada, deixa, não atrapalha. Se te pedir ajuda para ir no banheiro, você está ali. Mas é isso da gente aprender com eles que esse tempo precisa existir, esse espaço precisa existir, e o nosso papel é ficar ali de apoio. Às vezes, a gente leva um balde, deixa ali no canto, porque vai chegando menino, vai chegando menino, você não sabe se o que tem vai dar.

Tem uma moça lá, não sei se todo mundo sabe, tem uma moça que é estudante de Teatro, ela está indo fazer uma observação*. E aí, um dia, ela deixou lá uma caixa, desse tamanho assim, num cantinho, cheia de tecido, e não falou nada. E eles foram saindo do lanche, claro que alguém abriu a caixa e foi tirando os tecidos. Às vezes, você deixa alguma coisa, e todo mundo queria uma saia ou uma coroa, ou uma capa. E eram tecidos de formatos diferentes, cores diferentes, estampas diferentes, uns tecidos pequenininhos assim, que você dava um nó, você custava a dar o nó, porque precisava ser uma saia, ou uma coroa ou o que fosse, ou um vestido. E que você pensa assim: a criança enxergou uma coroa ali, num pedaço de triângulo. Nosso cuidado é sempre assim: “Como que você quer que faz?” “Ah, põe aqui, amarra tal...”, se não a gente já vai para a coisa pronta demais. Tem hora que você vê, eles têm um outro raciocínio, uma outra linha de pensamento tão legal, que você diz: “nossa, não pensei nisso!” E têm esse olhar para todas as coisas. E para atender essa necessidade e essa riqueza interna, é muito melhor objetos, materiais, que não estão totalmente prontos. Que podem ser transformados no que for, que eles vão transformar.

Então, esse é nosso material de trabalho diário, de 1h às 6h. E é nosso esforço diário de permitir que todas essas coisas aconteçam todas as tardes, permitir que a criança tenha esse tempo e esse espaço, juntas ali, porque juntas acontecem muitas coisas, porque é tudo o que ela precisa. A gente sempre fica nesse policiamento, assim, de não colocar alguma coisa que vá cortar, não colocar alguma coisa que impeça que isso aconteça, que vai chamar para um lugar que já é tão comum, viciado, que é o que, muitas vezes, a gente faz, né?

E um exercício também que a gente faz, que é delicioso, é olhar o mundo pelos olhos deles. Às vezes, a gente está lá no pátio, sei lá para onde a gente está olhando, que eles chamam para uma outra coisa que você não viu, para uma plantinha que nasceu, para uma florzinha, para um lagarto. E o mais maravilhoso é o encantamento, isso que a gente quer: que isso, que tem lá dentro, não se perca, que eles sempre olhem para o mundo com encantamento. E, quando a gente permite tudo isso, que essa brincadeira aconteça, que essa convivência aconteça, a gente está contando para eles assim: “vai, vai, que você tem muita coisa para descobrir. Eles devolvem sempre chamando a gente para olhar para coisas que, às vezes, passam despercebidas por nós.”

*Lorena Tófani, estudante de graduação em teatro da Escola de Belas Artes da UFMG, desenvolveu uma monografia com base em um período de observação da rotina do Quintal, intitulada “Entre capas, saias, calcinhas e heróis: performatividade e poética de meninas e meninos no quintal”.